CÉU D’ÁSTROS – CAMILA MOTA | 20 anos a vagar nesta constelação

Hoje, 1º de junho de 2017, completo 20 voltas da terra entorno da sol na companhia Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona. Nasci em Belo Horizonte, cidade de ferro cheio, bruto reverberante em 1974, no governo Médici; passei um ano em Montes Claros, norte de minas, catrumânia.

Com dois anos fui pro rio de janeiro. Lá, fiz o curso de ciências sociais por um ano e comecei a trabalhar paralelamente em teatro, com o Márcio Vianna, um diretor carioca já morto, que ficou muito conhecido da década de 1990 por fazer um “teatro de vanguarda” em peças experimentais. Abandonei o curso de ciências sociais e prestei o vestibular na UNIRIO pra artes cênicas. E, por incrível que pareça, minha maior dificuldade era a disciplina de interpretação, que eu achava chata. Gostava mais das matérias teóricas e de artes plásticas e quase mudei para cenografia.

Em agosto de 94, ao assistir o Teatro Oficina fazendo Ham-Let no parque lage, me apaixonei pela companhia. Em dezembro de 95 passei uma semana no candomblé e conheci Vera Barreto Leite, e quando a companhia voltou ao rio com Bacantes no rio cena contemporânea de 96, Vera me chamou pra ir a são paulo. Ainda do rio, me aproximei da companhia e comecei a inventar e trabalhar em idéias mirabolantes, como produzir Bacantes em um porta aviões da marinha na praça Mauá… E como era ainda bem inexperiente fui incapaz de produzir essas obras. Em 1997 liguei e pedi asilo teatral ao Zé, que me disse pra ligar pra Marcelo, que respondeu:

– Chega aí e vamos ver o que é que rola…

Vim. 20 anos atrás, 1º de junho de 1997.

Era início de um processo curto, o Rala o Grelo – espetáculo musical encerrava as atividades de um projeto do SESC chamado Babel, do qual participaram muitos outros artistas: Kazuo Ohno, Gerald Thomas, músicos, artistas plásticos… o Teatro Oficina foi convidado a fazer um programa de auditório, apresentado para cinco mil pessoas embaixo da cobertura de um posto de gasolina onde hoje é o SESC pinheiros. E foi um vexame! Assim foi a minha estreia no Oficina, numa performance que começou com cinco mil pessoas e terminou com trinta assistindo.

Estrear num vexame foi muito bom, deu corpo para adversidades, mas gerou um big bang na formação da companhia que tinha renascido com a estréia de Ham-Let  e tinha feito a proeza de inaugurar o 3º teatro – o terreiro eletrônico com projeto de Lina Bo Bardi e Edson Elito.

Esse big-bang resultou na saída de muitos artistas dessa geração, e também a entrada de alguns jovens cabaços como eu, e no final de, montamos Taniko, um nô japonês – a última peça que Luiz Antonio Martinez Correa tinha feito, uma peça muito delicada. Nessa montagem trabalhamos com Cris Cibillis, uma artista chilena que tinha feito Gracias Señor – peça do oficina de 1972 – e que nos deu, do ponto de vista do rito, um embrião muito precioso do te-ato, linguagem desenvolvida pela companhia principalmente depois do AI5, num momento em que as pessoas não podiam falar nada, e por isso começaram a trabalhar o silêncio, a comunicação no silêncio, a descoberta do mundo orecular, trabalhar os sentidos de maneira ativa.

E nós tivemos um embrião disso fazendo o primeiro Taniko, com um coro cabaço que cresceu em Cacilda!.

Camila Mota, Fransérgio Araújo y Sylvia Prado – Cacilda! 1998 – foto: Lenise Pinheiro

Em 1998 o coro de Cacilda! era muito jovem, cabaço mesmo, e contracenava com Bete Coelho, uma maravilhosa atriz mais experiente. Essa contracenação foi a própria matéria da peça, principalmente do segundo ato, baseado em A Gaivota, de Tchekhov – Zé Celso convidou Cacilda Becker pra fazer Arcadina no Oficina, mas ela fez Esperando Godot, de Beckett, e morreu. Cacilda vem da tradição maravilhosa do Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, e das companhias derivadas de lá, formadas por grandes atores daquela geração, mas que foram balançadas pelo surgimento de grupos como o Oficina e o Arena, que trabalhavam com outra estrutura. O segundo ato de Cacilda! expõe o conflito da relação de uma Cacilda Arcadina com o teatro de coro. E essa era justamente a relação entre uma atriz mais experiente, a Bete Coelho, descobrindo a contracenação com a gente, um coro cabaço formado por mim, Sylvia Prado, Flávio Rocha, Fernando Coimbra, Fransérgio Araújo… Nós éramos muito inexperientes, mas tivemos uma força extraordinária pra nos revirar do avesso nesse processo, de descabaçar, olhar desassombradamente para protagonistas experientes. Zé foi um mestre em transformar esse conflito humano em trans-humano, colocando em cena essa matéria viva. Foi um processo muito fértil porque é um luxo ter uma Arcadina de verdade para contracenar. O coro de Taniko virou o coro de Cacilda! que formou um jovem coro cordão dourado – eu já não era a única criança. Cabaços, e ao mesmo tempo tão delicados, viramos a protagonização de Boca de Ouro. Os protagonistas de Boca de Ouro encararam Os sertões, trabalho que se expandiu numa multidão e forjou a linguagem musical da companhia, em óperas de carnaval. E aí, no meio da multidão já não sabíamos mais quem éramos. Aquela célula era só uma informação preciosa, um código de dna, em meio a tantos. Nos perdemos, apodrecemos, fomos malhados na bigorna.

Boca de Ouro, 1999.
Boca de Ouro, 1999. foto Lenise Pinheiro

Mas foi no processo de Cacilda! ainda bebês, que nós descobrimos que o teatro é uma bruxaria, é um rito, no dia a dia, nos ensaios, no amor pelo metiê. Descobrimos que a relação entre contrários está presente o tempo todo em nós, em nosso corpo. Celularmente falando, o corpo tem calor e tem frio, em nós habitam contrários. É uma libertação lidar com um conflito a partir do momento em que a gente entende que o corpo é gerado e possuído por conflitos. Daí você se depara com um contrário e você o sacra, transforma o contrário em um sacrário. A experiência que nós tivemos em Cacilda! – a contracenação das forças contrárias de Arcadina e Treplev, fazem parte da bruxaria que gera permanentes transformações. Pra chegar nesse estado, tudo deve ser transformado em rito: chegar antes, comer, se preparar fisicamente. Cada peça pede uma preparação, uma peça de seis horas exige uma disposição energética diferente de uma de duas horas. Não dá pra comer a mesma comida para todas as peças, eu pelo menos não consigo, porque cada trabalho pede uma resistência, uma tensão, uma ligação. E aí eu volto para Cacilda, na cena em que ela conhece o diretor italiano Adolfo Celi e vai dizendo a ele que no teatro tem que ter comodidade para os atores, iluminação no camarim, água filtrada – coisas que o ator precisa. Ele então pergunta porque ela está falando nessas questões de organização e ela responde que é o amor pelo metiê. Nesse amor pelo metiê está a bruxaria.

camila mota e joana medeiros, cacilda!!!!! 2014, foto jennifer glass

Claro que nem todo mundo que trabalha Teatro Oficina vai fazer o mesmo rito que eu, porque cada um tem a possibilidade de criar o seu ritual. Inventar o seu próprio rito vai refletir no que você quer da peça, no que você dá para a peça e no que você recebe da peça pra viver na vida.

Nesse sentido, o Teatro Oficina é um lugar muito interessante, pois ele exige realmente uma auto-coroação. O trabalho de cada um depende muito de cada um.

No meu processo de criação das personagens, por exemplo, primeiro eu fico obcecada. Uma coisa que gosto de fazer é andar em meditação peripatética pra ativar os pensamentos. E cada personagem me revela como devo me preparar para ela. Nas peças em que fazemos muitos papéis, como em Os Sertões e as Cacildas!!!!!!!!!, é importante descobrir a linha de ação contínua que passa de um papel para o outro. Mas na real, a maneira de se preparar tem muito a ver com a peça que se vai fazer, porque é ela que revela o que você precisa. E cada espetáculo te dá uma interpretação diferente da vida naquele momento. As personagens me possibilitam desapegar da maneira que eu penso, de como eu vejo o mundo, para que eu olhe de outro jeito. Essa é uma grande bruxaria do teatro, que trabalho há mais de 20 pra aprender a viver.

É muito deliciosa a sensação de ter vivido esses 20 anos nessa constelação. Uma das coisas mais interessantes é trabalhar repertórios e voltar a fazer um espetáculo anos depois. Isso ficou bem claro pra mim quando em 2015 fizemos uma nova montagem de pra dar um fim no juízo de deus, de Artaud. A última encenação desse espetáculo tinha sido em 1998 e voltar ao mesmo texto 17 anos depois foi bastante brutal, pois as mesmas palavras já estavam repletas de outros sentidos. A passagem do tempo, as giras da terra em torno do sol ficavam completamente expostas. E essa percepção da viva vivendo se dá dia a dia, minuto a minuto. Não é revelada apenas nas passagens de décadas.

Agora estamos ensaiando Macumba Antropófaga, que vai estrear no dia 24 de junho, dia de São João, o ano novo do sul hemisfério e depois de 5 anos (a última vez que fizemos foi em 2012) é tudo tão diferente – a interpretação mudou, o mundo mudou, se polarizou, o fascismo saiu do armário de cada um de nós e esse espetáculo se tornou um grande transporte de interpretação desse tempo doido de agora pra cantar o amor e a dor da vida que come e é comida em nosso intestino labirinto.

MERDA!

 

entrevista de Camila Mota ao portal Cronópios