A Vida Nua

O Teatro Oficina de São Paulo apresenta o épico de 24 horas ?Os Sertões? (Krieg im Sertão) no Volksbühne

Uma Lenda Brasileira
Durante 20 anos, Zé Celso, único cidadão que oficialmente faz parte da herança cultural brasileira em vida, analisou o romance ?Os Sertões? quanto às possibilidades de adaptá-lo para o palco. Nessa obra, Euclides da Cunha descreve com fidelidade o levante dos pobres em 1984 no interior da Bahia, no famigerado sertão, inclusive os massacres e canhões alemães da Krupp que deram um sangrento fim à guerra. Com sua publicação, o romance abalou a compreensão que a jovem República tinha de si mesma, e passou a ser uma parte essencial da memória coletiva. O lendário diretor de teatro Zé Celso dramatizou a história de ?Os Sertões? em quatro partes e uma leitura. Em Berlim, os espaços do palco e da platéia foram especialmente re-configurados, permitindo uma maior participação do público nessa apresentação em que o corpo e as imagens desempenham papel de destaque.

Quando o grupo de teatro brasileiro Teatro Oficina se apresentou como convidado no festival Ruhrfestspiele em Recklinghausen, Alemanha, no ano passado, os visitantes contaram suas experiências de olhos arregalados. Falaram de orgias de danças e beijos entre atores e espectadores, em excessos eróticos, durante os quais parte do público se desfez de suas roupas, em seios respingando leite materno e vaginas expostas e projetadas do palco para grandes telas.

Por ocasião de uma apresentação em Moscou, segundo o fundador e diretor da trupe, Zé Celso, os jornais estavam cheios de fotos com cenas mostrando atores nus, enquanto os espectadores abandonavam o espetáculo às dúzias. É um caso típico e irritante de reducionismo a efeitos superficiais. A quebra de tabus e as investidas sensuais do teatro de Zé Celso não são um fim em si mesmo, e muito menos uma tentativa forçada de originalidade, com o intuito de chamar atenção. Sem qualquer vestígio de neurose auto-imagética, mas sim com absoluta clareza de pensamento, o diretor teatral, um dos protagonistas do movimento brasileiro do Tropicalismo, deriva a sua arte da história da filosofia ocidental, afirmando: ?Para entender o meu trabalho, não existe coisa melhor do que ler Nietzsche?. Os conceitos do dionisíaco, da orgia, da dissolução extasiada na multidão são o subtexto de toda a sua obra teatral, resume o diretor de São Paulo. A esse livre-pensador do teatro não interessam encenações nas quais os atores habilmente declamam textos a partir do palco. Quando fala da relação entre atores e espectadores, ele se refere menos a uma aliança intelectual e muito mais a uma ligação no sentido bem direto, na forma de contato corporal. É por isso que seus atores estimulam seus convidados a dançar, por isso o Teatro Oficina aposta no espectador itinerante, ao invés do habitual teatro frontal. Em São Paulo, a trupe se apresenta em um galpão de fábrica situado nas cercanias do deteriorado centro da cidade, num espaço em que a arquiteta Lina Bo Bardi, ao invés de um palco, construiu uma pista de 40 metros de comprimento e 4 metros de largura. O público fica sobre andaimes de quatro andares que ladeiam o espaço da cena.

Para apresentar no Volksbühne o projeto gigante sobre a história e a dura realidade social do Brasil, ?Os Sertões?, a pista foi construída de viés, percorrerendo todo o espaço da platéia e do palco. Aqui é possível movimentar-se livremente ? um declarado recurso de fuga contra quaisquer ?estados tediosos?. Este fato não é de pouca importância, tendo em vista que a festa dionisíaca dura cerca de 24 horas. ?Os Sertões? divide-se em cinco partes; cada uma leva de 3 a 6 horas. Quatro partes já estão prontas; por ora, a parte final tem o caráter de ensaio público, durante o qual Martin Wuttke fará uma leitura dos últimos capítulos do texto sobre o qual se baseia a encenação.

Há três anos, Zé Celso e sua trupe, composta de cem pessoas, incluindo crianças de rua, vem ensaiando essa sensual ofensiva, com seus engolidores de fogo e acrobatas, e com elementos emprestados da ópera e do carnaval. A base da encenação é o ensaio de 700 páginas, de mesmo nome, do jornalista e escritor Euclides da Cunha, ensaio esse publicado em 1902 e considerado a primeira grande análise crítica da vida e realidade brasileira. Em três grandes seções ? ?A Terra?, ?O Homem? e ?A Luta? – Euclides da Cunha faz uma reflexão sobre a topografia, a vegetação e a luta de sobrevivência dos índios, africanos, europeus e mestiços do árido sertão, da imensa região de seca no interior do estado da Bahia, no Nordeste do país. O ponto de partida da reportagem é a guerra civil que eclode logo após a proclamação da república brasileira. Sob a liderança do carismático pregador Antonio Conselheiro, os sertanejos pobres, que recusavam a submissão às novas leis tributárias, fundaram, em 1894, o povoado ilegal de Canudos. Após o fracasso das três primeiras expedições militares enviadas pelo governo ao sertão para derrubar os revoltosos, a quarta expedição massacrou a cidade numa carnificina à qual praticamente nenhum habitante sobreviveu.

O conflito interessa a Zé Celso não só por se tratar de um acontecimento decisivo na história do Brasil, mas sim como padrão, como arquétipo de guerras e massacres do presente. Um debate sobre tais temas com o diretor provavelmente seria interminável, pois Zé Celso é um pensador e orador de grandes arcos associativos. Por exemplo, a sua observação de que os alemães são ?um povo muito interessante?, principalmente quando beberam um pouco, leva certeiramente a uma discussão sobre o movimento literário do ?Sturm und Drang?, ou ?tempestade e ímpeto?. Só há uma questão à qual ele responde laconicamente: à pergunta sobre a ditadura militar, durante a qual ele foi preso e torturado, e sobre o exílio, entre outros em Moçambique, Estados Unidos e Europa. Ele não gosta de se estilizar e apregoar; diz que não quer ?fazer disso um show?, e que, no fim das contas, ?as forças da vida são muito mais fortes que as forças da repressão?. A propósito, faltou pouco para que Zé Celso, ao invés do teatro, enriquecesse a justiça brasileira: Antes de fundar o Teatro Oficina, ele se encontrava no rumo forçoso da carreira jurídica. ?Venho de uma família típica de classe média?, explica ele, rindo, ?e para os filhos dessa condição estão previstos três tipos de profissão: médico, engenheiro ou jurista. Direito era o mais fácil, lá a gente encontrava todos aqueles que não tinham talento para as outras duas profissões.?

No entanto, o reservatório para filhos pouco inspirados da classe média revelou-se extremamente frutífero em termos artísticos: A Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo tornou-se a célula germinativa do Teatro Oficina. Foi ali que Zé Celso, junto com seus colegas, encenou seus primeiros trabalhos, já com o mesmo nome. Durante as semanas de estadia em Berlim, quando não estiver no Volksbühne, ele provavelmente vai estar nos bares e nas baladas. Como ele diz, uma coisa é certa: ?No pouco tempo em que eu não estiver trabalhando ou dormindo, vou beber e namorar. É o melhor jeito de conhecer as pessoas.?

Os Sertões, Volksbühne,

Rosa Luxemburg-Platz, Mitte
Parte 1: 14/09 + 21/09, Parte 2: 15/09 + 22/09, sempre às 19h00;
Parte 3: 16/09 + 23/09, Parte 4: 17/09 + 25/09, sempre às 18h00,
Parte 5: 25/09 – Ingressos: www.tip-berlin.de/tickets
Artigo de Christine Wahl publicado em 19/05/2005 na revista TIP número 19/05
Traduzido por Angelika Köhnke