Processo de tombamento N 1.515-T-04 : Parecer Jurema Machado

Processo de tombamento N 1.515-T-04 

Teatro Oficina

São Paulo, SP

Trata-se de processo de tombamento de edifício teatral, sede do Grupo Teatro Oficina, situado à Rua Jaceguay 520, em frente ao Viaduto Julio de Mesquita Filho (Minhocão) no Bairro Bela Vista – o Bexiga,  em São Paulo.

O edifício em questão, de 9 x 50 m (450m2), ocupando todo o terreno, tem projeto concebido entre 1982 e 1983, pelos arquitetos Lina Bo Bardi e Edson Elito, executado a partir de 1986. De um dos lados do Oficina encontra-se um prédio de escritórios e, do outro, terreno vazio correspondente a quase metade da quadra, utilizado como estacionamento, de propriedade do Grupo Silvio Santos Participações SC Ltda, resultante da demolição de uma série de pequenas edificações.

O processo é instruído por elementos suficientes para que se possa alcançar a dimensão e a complexidade do objeto proposto para tombamento. Opto, de início, por apenas relacionar sucintamente essa documentação, com o intuito de assegurar aos Conselheiros da sua suficiência e adequação.

Sobre os pareceres técnicos nele contidos, contrários e favoráveis ao tombamento, ou contrários e favoráveis ao Registro do Teatro Oficina como patrimônio imaterial, irei discuti-los ao longo da descrição do bem e da avaliação sobre a pertinência do Tombamento ou do Registro.

Passo, então, a apenas enunciar o conteúdo do dossier:

  • O processo tem início em ofício do Diretor do Teatro Oficina, José Celso Martinez Corrêa, de março de 2003, em que este que solicita o tombamento federal do Teatro Oficina e seu entorno como obra de arte urbana.
  • Segue documentação da 12ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo, relativa ao Agravo de Instrumento interposto pelo Instituto Lina Bo e P.M.Bardi, sendo requerido o Grupo Silvio Santos Participações SC Ltda. e a Fazenda Pública de São Paulo. O Agravo solicita o cancelamento da aprovação, pelo Condephaat – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo – de construção de edifício de autoria do arquiteto Julio Neves, pretendida pelo Grupo Silvio Santos, alegando que o tombamento estadual do imóvel condiciona a construção a uma distância de 300 metros do edifício tombado. O recurso é negado por unanimidade dos desembargadores no final de 2002
  • Segue Parecer técnico do arquiteto Vitor Hugo Mori, da 9ª SR do IPHAN, de 1º de dezembro de 2003, contrário ao tombamento federal
  • Em fevereiro de 2004, o processo é formalmente aberto sob o numero 1515-T-04
  • São acrescidos novos documentos ao Processo, reiterações do autor da solicitação inicial, inclusive trazendo dados sobre novo projeto proposto pelo Grupo Silvio Santos para edifício a ser construído nos lotes contíguos, desta vez de autoria dos arquitetos Francisco Fanucci, Marcelo Ferraz e Marcelo Suzuki.
  • Segue parecer técnico de Claudia Marina Vasques, do Depto de Patrimônio Imaterial do IPHAN, contrário ao Registro e argumentando pela rediscussão do tema e consideração de aplicação de instrumento – no caso o tombamento – que possa ter efeito de proteção sobre a materialidade do bem
  • Segue deferimento de liminar por Juíza da 3ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo, datado de 15 de janeiro de 2007, suspendendo os efeitos da aprovação pelo Condephaat  de construção nos imóveis vizinhos ao Teatro Oficina, de modo a propiciar o contraditório
  • Segue informação, de 13 de julho de 2006, da concessão de permissão de uso do imóvel do Teatro Oficina, por 99 anos, dada pelo Estado de São Paulo à Associação Uzyna Uzona, mantenedora do Teatro. A permissão é confirmada pelo Legislativo estadual em 2007.
  • Após novas reiterações, abre-se o 2º volume do Processo, com parecer técnico de Jose Antonio Duque Estrada, do DEPAM, de fevereiro de 2008, manifestando-se favorável ao Registro do Teatro Oficina como Patrimônio Imaterial.
  • A Gerente de Proteção do DEPAM, Jurema Arnaut, encaminha o parecer mencionado ao Diretor do DEPAM, sugerindo o arquivamento do Processo e sua re-análise pelo DPI, com vistas ao Registro
  • Seguem reiterações do proponente, inclusive com novos elementos relativos ao uso que considera adequado ao seu entorno, ou seja, projeto de equipamento cultural de ampla utilização pública, a que denomina Teatro de Estádio. Dentre esses novos elementos, figuram pareceres em defesa da proteção do Teatro e da utilização pública dos terrenos contíguos, de autoria do geógrafo Aziz Ab Saber, do músico Jose Miguel Wisnik e do arquiteto Guilherme Wisnik.
  • Segue Parecer do diretor do DEPAM, Dalmo Vieira Filho, favorável ao tombamento e inscrição no Livro de Tombo Histórico, contendo diretrizes de critérios de intervenção e seguido de proposta de delimitação do entorno
  • Segue Parecer Jurídico e notificação ao proprietário do lote do Teatro, no caso, o Estado de São Paulo.

Com esse conteúdo, o Processo me foi encaminhado para análise e parecer. A esses elementos, acrescentei visita ao local e extensa consulta a fontes bibliográficas, não apenas referentes ao Teatro, sua arquitetura e sua história, mas também ao Bairro do Bexiga, território do qual é indissociável, de forma a melhor compreender a sua história, valores e significados, assim como a trajetória de sua proteção.

É o que passo a relatar.

O Teatro Oficina 

A história da Cia Teatro Oficina, seus métodos, linguagens e experimentos, o edifício da Rua Jaceguay 520, São Paulo e o Bexiga são indissociáveis. A compreensão desse todo vai se descortinando de maneira não-hierárquica e não-linear, o que faz da tentativa de retroceder e apresentar cada um desses elementos de forma segmentada uma tarefa difícil e, por vezes, empobrecedora. No entanto, esse é um esforço necessário para que se possa sedimentar a reflexão que dará sustentação ao ato administrativo que deverá decorrer da análise desse Conselho. É necessário – e é sobretudo estimulante – descortinar, com cuidado e precisão, o que dá consistência e unidade a esse denso tecido.

A história do Oficina 

Em 1958, é criada a Cia.Teatro Oficina, por José Celso Martinez Correa e um grupo de estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em Sao Paulo. Nessa primeira fase, que antecede à profissionalização, José Celso atua em duas peças de sua autoria, Vento Forte para Papagaio Subir (1958) e a A Incubadeira (1959). Sob a direção de Amir Haddad, em 1960, simultaneamente à passagem do autor pelo Brasil, o Oficina encena A Engrenagem, texto de Jean Paul Sartre adaptado por José Celso e Augusto Boal, e, em 1961, As Boas, uma releitura de As Criadas, de Jean Genet.

O ano de 1961 marca o início da profissionalização do Grupo, com a criação da empresa teatral que tem como sócios Renato Borghi, José Celso Martinez Corrêa, Ronaldo Daniel, Jairo Arco e Flexa e Paulo de Tarso. Para a montagem de casa de espetáculos, é alugado o imóvel da Rua Jaceguay 520, local onde se encontra o atual edifício teatral objeto desse parecer, então de propriedade do Sr. Luiz Cocozza.

Nesse mesmo ano, a casa é adaptada conforme projeto de Joaquim Guedes, falecido em 2008, arquiteto e urbanista de vasta e importante obra, professor da FAUUSP e critico ferrenho do formalismo. A solução de Guedes para o primeiro Oficina, a que se convencionou chamar de teatro-sanduíche, tinha palco no meio de duas arquibancadas que se defrontavam, separadas pela cena. Esse interior foi destruído por incêndio em 1966, como se verá adiante. A inauguração da sede do Oficina é também a estréia de José Celso como diretor com A Vida Impressa em Dólar, de Clifford Odetts, com Eugenio Kusnet, Fauzi Arap, Renato Borghi e Etty Frazer, montagem que acabou premiada como revelação de diretor pela Associação Paulista de Críticos de TeatroUm dia depois da estréia, a censura do governo Jânio Quadros proíbe a peça e o prédio de funcionar como teatro.

Em 1962, é montado Um Bonde chamado desejo, de Tennessee Williams, com direção de Augusto Boal, cenografia de Flávio Império, tendo Maria Fernanda, Mauro Mendonça e Célia Helena como atores. Ainda em 1962, com Quatro num quarto, o Oficina experimenta, sob orientação de Eugênio Kusnet, atores profissionais mostrando cenas de difícil interpretação para estudantes de teatro, entre os quais estava, por exemplo, Dina Sfat. Segundo José Celso, esse era um “tempo em que o ego dos atores era superado pela paixão pela Arte da Interpretação e por colocar-se como um Objeto–Sujeito de Estudos pra si e pra todos os colegas.”

Em 1963,  Pequenos Burgueses, de Maximo Gorki, enfocando a burguesia russa às vésperas da Revolução socialista e onde não faltavam conexões com o momento que antecedeu o golpe militar de 1964, teve montagem primorosa, com Eugenio Kusnet e Raul Cortez no elenco e cenários de Anísio Medeiros. A peça, embora retirada por alguns meses de cartaz depois de 1964, foi apresentada mais de 1000 vezes e rendeu a José Celso todos os prêmios de melhor direção do ano. É mencionada como a melhor montagem realista do teatro brasileiro e com ela o Oficina ingressa definitivamente no rol de um dos mais importantes grupos teatrais do país.

Com a encenação de Toda donzela tem um pai que é uma fera e Andorra, de Mark Frish, em 1965, cenografia de Flávio Império, Renato Borghi premiado com Moliére de Melhor Ator e participação especial de Madame Morineau, encerra-se o que corresponderia segundo alguns autores, à segunda fase do Grupo, onde predominou uma linguagem ainda baseada na experiência cênica internacional, com espetáculos de grande qualidade e textos em sua maioria estrangeiros.

Um incêndio no teatro, em maio de 1966, segundo José Celso, “por grupos para-militares” obrigaria a uma interrupção temporária, origem da sua reconstrução conforme projeto de autoria de Rodrigo Lefebvre e Flávio Império.

Flávio Império, arquiteto, pintor, cenógrafo e professor da FAUUSP, falecido em 1985, é considerado um dos melhores cenógrafos do teatro brasileiro. Foi um dos fundadores do Teatro de Arena, onde criou cenografias importantes, além de várias mencionadas para o Oficina. O projeto de Império e Lefebvre apresentava a mesma solução de fachada que permanece no edificio atual – pequena caixa ocupando os 9 metros de frente, com porta central de aço e platibanda projetada para fora –  e, no interior, aproveitava-se do aclive do telhado em direção ao centro da edificação para ter nesse centro um palco italiano, com mecanismo giratório, para onde convergia a platéia.

A primeira montagem no espaço reformulado por Flavio Império é o Rei da Vela, de Oswald de Andrade.

“O Rei da Vela” lota o Oficina, é a manchete da Folha de São Paulo de 30 de setembro de 1967:

“O Rei da Vela”, peça inédita de Oswald de Andrade, estreou oficialmente, ontem à noite, para um grande público que lotou o Teatro Oficina e que aplaudiu as interpretações de Renato Borghi, Francisco Martins, Fernando Peixoto, Liana Duval, Ítala Nandi, Etty Fraser, Dirce Migliaccio e outros atores do elenco.

 O diretor de “O Rei da Vela”, José Celso Martinez Correa, entusiasmou-se com a receptividade e a boa acolhida que o grande público ofereceu à peça (…) ele diz que “o Oficina procurava um texto para a inauguração de sua nova casa de espetáculos que, ao mesmo tempo, inaugurasse a comunicação ao público de toda uma nova visão do teatro e da realidade brasileira. Eu havia lido o texto há alguns anos e ele permanecera mudo para mim. (…) Depois de toda a festividade esgotar suas possibilidades de cantar a nossa terra, uma leitura do texto em voz alta para um grupo de pessoas fez saltar, para mim e todos os colegas do Oficina, todo o percurso de Oswald na sua tentativa de tornar obra de arte toda a consciência possível do seu tempo“. 

(…). “E Oswald nos deu, em ‘O Rei da Vela’, a ‘forma’ de tentar apreender, através de sua consciência revolucionária, uma realidade que era e é o oposto de todas as revoluções. ‘O Rei da Vela’ ficou sendo uma revolução de forma e conteúdo para exprimir uma não-revolução. De sua consciência utópica e revolucionaria, Oswald reviu seu país, e em estado de criação quase selvagem captou toda a falta de criatividade e de historia desse mesmo país. (…) 

O diretor conclui dizendo que sua geração apanhará a bola que Oswald lançou com sua consciência cruel e antifestiva da realidade nacional e dos difíceis caminhos de revolucioná-la. “Ela não está, ainda, totalmente conformada em somente levar sua vela. São os dados que procuramos tornar legíveis nesse espetáculo“.

Sobre sua participação na peça, Renato Borghi dizia então que “A dramaturgia bombástica me fazia sentir atuando dentro da raiz e da alma brasileira. Nesta peça, o Oswald falava do Brasil de uma forma antropofágica, devorando o que a gente tinha de bom e de péssimo. O Oswald pegou o Brasil por todos os lados, devorou-o e depois o cuspiu no palco. E eu assinei em baixo, com sangue, suor e lágrimas…”.

O Rei da Vela, escrito por Oswald em 1933 e traduzido para o palco pelo Oficina, acaba, segundo alguns autores, dando origem, ou forma, ao Tropicalismo, que teria repercussão nas artes plásticas, na música, no cinema e na literatura.

Em 1968, estréia Roda Viva, de Chico Buarque de Holanda, com direção de José Celso, cenários e figurinos de Flávio Império. Sobre esse espetáculo, José Celso afirma ser a “descoberta de todo espaço cênico como área de atuação e retomada do contacto físico com o público, como no Carnaval, no Candomblé e na Umbanda.”

Em 13 de dezembro de 1968, instaura-se o AI-5 e o Teatro Oficina estréia Galileu Galilei, de Bertold Brecht. A encenação apresenta o coro preso atrás de grades, sem olhar para platéia. No coro, misturam-se trechos do Roda Viva e do Rei da Vela, o Oficina fazendo novas leituras de seu próprio trabalho. “melhor Brecht também é dele” , seja Galilei Galilei, seja Na selva das Cidades, é o que diz Aimar Labaki.

Em 1969, com Na Selva das Cidades, de Brecht, acontece a primeira parceria de Lina Bo Bardi com o Oficina, justamente sobre a relação entre o teatro e a cidade, mais precisamente entre o teatro e o Bexiga.  A construção do Minhocão, logo em frente ao Teatro, que seccionaria o Bexiga, numa espécie inauguração do processo de descaracterização que se abateu sobre o bairro, toma conta do espetáculo. Ossos e lixo dos seus escombros e uma betoneira de cimento entram no cenário e Lina traz para o palco os troncos de árvores derrubadas pela construção. Essa cena teria inspirado Caetano Veloso para a expressão “oficina de florestas”, na letra de Sampa, “Da força da grana que ergue e destrói coisas belas – Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas, Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços – Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva”  e seria incorporada pelo Oficina nas suas várias representações de São Paulo.

Os anos seguintes são de retração do Grupo, que inicia clandestinamente circulação pelo nordeste brasileiro, até a estréia, em 1972, de Gracias Señor, com cenografia também de Lina Bo Bardi. A peça é suspensa depois de polêmica entre os censores e a Policia Federal que insistia em mantê-la em cartaz para estudar o que chamava de “hipnotismo, aprendido da revolução chinesa pelos atores do Oficina” tal como publicado em um dos “Como eles agem”, série de boletins oficiais de esclarecimento, que os jornais da época transcreviam como matéria anticomunista.

Em 21 de abril de 1974, a Polícia invade o Teatro Oficina, José Celso é preso, junto com o cineasta Celso Lucas, e posteriormente mantido sob liberdade vigiada. O diretor acaba tendo de deixar o país e conduz vários trabalhos no exílio em Portugal. O Teatro reabre somente em 1979, no mesmo 21 de abril, quando começa sua aproximação com novos públicos, especialmente de migrantes, do Movimento Negro, de sambistas de São Paulo e da região do Bexiga. Em 1982, Mistérios Gozozos de Oswald de Andrade, marca o retorno.

Nesse mesmo ano de 1982, com homologação em 1983, o Teatro Oficina é tombado pelo Condephaat. A solução do espaço interno quando do tombamento era aquela projetada por Flavio Império em 1966, com palco italiano, e onde havia estreado o Rei da Vela. Essa solução foi totalmente alterada, anos mais tarde, com base em projeto de Lina Bo Bardi, que é como se encontra hoje o teatro objeto de análise. Nesse fato – alteração após tombamento estadual – tem origem polêmica com o Condephaat, relatada pelo Parecer do arquiteto Vitor Mori, da 9ª SR do IPHAN. Com base na documentação do processo do Condephaat, analisada no citado Parecer, Flávio Império afirmava que o Teatro Oficina representava um documento de como se deu o “surto de pesquisa de linguagem teatral que influenciou até hoje o teatro Moderno no Brasil”. O parecer para tombamento do então Conselheiro do Condephaat, Ulpiano Bezerra de Menezes, valorizava a solução de adaptação do prédio antigo para o teatro, que não teria perdido “as características originais que permitem identificá-lo como um “casarão do Bexiga”. O grupo Oficina tem sua solicitação indeferida pelo Condephaat, com base na constatação de que não se poderia comprometer “as características materiais de um suporte físico cujo mérito foi reconhecido”.  o diretor do Teatro alega que o tombamento, de cunho sobretudo histórico, comportava, com total anuência do próprio Flávio Império, autor do projeto original, a possibilidade de alteração do interior para dar lugar ao projeto de Lina Bo Bardi, almejado pelo grupo que queria abandonar de vez o Palco Italiano. O fato concreto é que esse interior foi demolido e a solução que se encontra em análise é a que lhe sucedeu, de autoria de Lina Bo Bardi e Edson Elito e cujas obras foram, em grande parte, financiadas pelo próprio Ministério da Cultura por meio do então SPHAN Pro Memória (1986), como informa Vitor Mori. Entendo que não cabe, independente do juízo que se possa fazer dos fatos, opinar sobre tombar ou não o edifício com base numa eventual crítica à condução desses acontecimentos. A análise deverá se basear, como procurarei fazer adiante, nos valores do edifício existente em si e dele como testemunho da história do teatro no Brasil.

Retornando à cronologia, em 1984, o imóvel foi desapropriado pelo Governo de São Paulo (governador  Franco Montoro) e cedido ao Oficina, situação que iria tornar-se definitiva apenas em 2006, quando o Estado (governador Claudio Lembo) assinou comodato de 99 anos com o Grupo.

Seguem-se, em 1991, As Boas, em 1993, Ham-let; em 1996, Para Dar um Fim no Juízo de Deus e  As Bacantes; em 1997,  Ela; em 1998, Cacilda! (quatro peças previstas, duas para a partir de 2010) eTaniko, o Rito do Vale (adaptação de Teatro Noh)em 1999, Boca de Ouro.

A partir do ano 2000, iniciam-se as leituras e oficinas de Os Sertões, de Euclides da Cunha. A aproximação com camadas mais populares da cidade, iniciada em décadas anteriores, implica agora a proximidade com os grupos mais excluídos do processo de desenvolvimento urbano de São Paulo, que nesse período vê recrudescerem os movimentos por moradia na sua região central, ocupações dos Movimentos dos Sem Teto, movimentos de catadores de papel, de defesa dos moradores de rua. Os Sertões é transformado em metáfora da cidade e especialmente do Bexiga; crianças e jovens da região passam a atuar nas leituras e posteriormente nas encenações. Essa metáfora parece ter sido premonitoriamente vista por Lina Bo Bardi na sua solução para o interior do Teatro, porque, além de tratá-lo como continuidade e penetração da rua – como corso, cortejo, desfile, procissão, romaria – deixa a parte central do piso sem revestimento, para que ali possa aflorar a Terra, o lugar, suporte da vida e das encenações.

Assim como no livro, as encenações de Os Sertões se dividem em três partes, que resultam em cinco: A TerraO Homem(I e II) e A Luta (I e II). Em 2002, estréia A Terra; em 2003, O Homem; em 2005, A Luta; em 2006, a segunda parte de A Luta e, finalmente, a obra completa em 2007. Em 2004, Os Sertões viaja para a  Alemanha e Boca de Ouro é encenada em Moscou. Inicia-se a filmagem de um longa metragem de Os Sertões, processo que já vinha sendo realizado com outros trabalhos do Grupo.

Em 2008, o Oficina comemorou seus 50 anos de existência, hoje são 52 anos e em 2011 serão 50 anos na Rua Jaceguay, no Bexiga.

Conclusão – Parte I

fenômeno Oficina não é um produto do acaso, mas de um ambiente de notável fertilidade, inclusive com repercussões no presente, a considerar o fato de que, mesmo com todas as transformações desses  50 anos, São Paulo  ainda dá lugar ao maior volume de produção, circulação e público teatral do país, da produção mais comercial a mais experimental.

Da mesma geração ou convivendo como o Oficina, tivemos o Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, do dramaturgo Jorge Andrade e de grandes diretores  como Antunes Filho e atores como Paulo Autran, Cacilda Becker, Tônia Carrero, Fernanda Montenegro e Sergio Cardoso; o Teatro Maria Della Costa, fundado em 1954, grandes atores e  importantes cenógrafos, como Gianni Ratto e Franco Zampari; o Teatro de Arena, que também explorou nova relação palco-platéia, com encenadores como Gianfrancesco Guarnieri,  Oduvaldo Viana Filho e Augusto Boal e atores como Eva Wilma, John Herbert,  Flávio Migliaccio, Milton Gonçalves e, mais tarde, Paulo José, Juca de Oliveira, Lima Duarte, Dina Sfat. Também do Arena, a fase de releitura da história brasileira com Zumbi e Tiradentes e a música de Edu Lobo, Caetano, Tom Zé, Gal e Maria Bethânia; o Teatro Ruth Escobar, depredado pela polícia durante a montagem do Oficina para Roda Viva, de montagens antológicas como Cemitério de Automóveis e  O Balcão, de produções com Victor Garcia, Jean Genet e Fernando Arrabal. Ainda da geração entre o final dos anos 1960 e o início dos 70, nomes como Plínio Marcos, Antônio Bivar, Zé Vicente, Mário Prata.

Todos foram, indistintamente, atingidos pela repressão política pós 1964. Yan Michalski, em O teatro amordaçado, faz um histórico do que ele chama da guerra dos 15 anos entre a censura e o Teatro (1964 /79) mostrando a irregularidade, a  irracionalidade, as proibições instantâneas,  por vezes mais moralistas do que políticas, prisões e exílio relatados em cerca de 300 episódios em todo o país, sem exceção. Segundo Michalski, essa era a época em que o lendário General Juvêncio Façanha dizia: ou vocês mudam, ou acabam!.

Quase todos se localizavam no Bexiga – TBC, Maria Della Costa  e Ruth Escobar  – e o  Arena, na Praça Roosevelt. TBC e Arena não mais existem, os teatros Maria Della Costa e Ruth Escobar continuam existindo, não como companhias, mas como salas de espetáculo.

Nesse aspecto, o que distingue o Oficina de todos eles é a continuidade. Não a longevidade, o que já seria muito, mas a permanência com renovação, permanência lastreada no vínculo com o presente, com o lugar, com a Terra – como em Canudos – e com a cidade. E nisso o edifício e sua inserção explicam muita coisa; são, ao mesmo tempo causa e conseqüência.

Ai estaria, também em parte, a razão do tema ter motivado o debate interno ao IPHAN sobre um eventual Registro do Teatro Oficina como patrimônio imaterial, provavelmente na categoria de Lugar, debate de forma alguma desprovido de sentido, mas que não encontra coerência com o previsto no Decreto 3551/2000, nem com as políticas e critérios que vem sendo adotados pelo DPI.

A descrição detalhada dessa trajetória evidencia a densidade e a dimensão de um fato cultural cuja proximidade temporal traz o risco de nos deixar indiferentes ou menos atentos. Feito isso, entendo que não faltam argumentos para reconhecer no edifício da Rua Jaceguay 520 como a representação material desse fato e, portanto, opinar pela sua  inscrição no Livro de Tombo Histórico.

A Arquitetura

O Oficina não é o portal da Catedral de Colônia do século XVIII, 

mas é o marco importante de um caminho difícil. 

 

A epigrafe é de Lina Bo Bardi, registrada no livro Teatro Oficina, parte da série sobre seus projetos publicada pelo Instituto Lina Bo e PM Bardi sobre a obra da arquiteta e seus colaboradores.O livro contém rica documentação sobre o projeto de Lina em parceria com Edson Elito, a partir de um conceito, ainda anterior, do Teatro-Rua, de autoria dela própria e do arquiteto Marcelo Suzuki.

Edson Elito é arquiteto pela FAU/Mackenzie, 1971, com vasta e importante produção, inclusive de novos edifícios teatrais, restaurações, além de atuação profissional destacada nas organizações profissionais e nos debates sobre arquitetura e urbanismo em São Paulo. Em texto de sua autoria na publicação mencionada, o arquiteto refere-se a um saudável, por vezes complexo processo de integração de diferenças culturais e estéticas: de um lado nós arquitetos e nossa formação modernista, os conceitos de limpeza formal, pureza de elementos, less is more, ascetismo;  e do outro, o teatro de José Celso, com o simbolismo, a iconoclastia, o barroco, a antropofagia, o sentido, a emoção, e o desejo de contato físico entre atores e platéia,o “ te-ato”. Os princípios do programa eram (…)os conceitos de rua de passagem, de passarela de ligação entre a rua Jaceguay, o viaduto e os espaços residuais (…) e grande área livre ao fundo; de espaço transparente, do (…) espaço cênico unificado – “ todo espaço é cênico”,  flexibilidade de uso, (…) recursos técnicos contemporâneos ao lado do despojamento (…). Ainda segundo Elito, “A leitura do texto As Bacantes e os conceitos do teatro Nô direcionaram os estudos iniciais com passarelas interligadas e cobertura de lona plástica alusiva à provisoriedade desejada, sem poltronas – apenas bancos que os espectadores movimentariam conforme a cena.” Descreve a impossibilidade de aproveitamento do interior do edifício existente e a decisão por manter apenas as paredes envoltórias, com seus arcos de tijolos de embasamento.

O projeto é desenvolvido com o palco percorrendo toda a extensão do teatro, um palco-passarela, palco-passagem, marcado por uma faixa central onde aflora a terra, em 1,50 m de largura. Esse palco-rua é margeado pela platéia, que se dispõe em andares de galerias construídas com tubos desmontáveis, semelhantes a andaimes. Essa soluçao faz com que o espectador percorra o espaço do teatro durante o espetáculo, transitando conforme seu desejo de recepção da cena. A teoria sobre a linguagem do teatro remete esse partido às idéias de Brecht e Antonin Artaud, de um teatro não ilusionista, onde, segundo Elito, “os atores, atrizes, os técnicos, o público, bem como todo o equipamento objeto da cena ou não, fazem parte do espetáculo, comungam ou se contrapõem.” Assim são dispostos equipamentos de iluminação cênica, som e controles eletrônicos e, posteriormente, introduzidos captação e distribuição de vídeo para todo o teatro, possibilitando ações simultâneas em diferentes lugares. Mais uma vez Elito descreve a soluçao dizendo que “O ator, pela proximidade e por estar visível sob todos os pontos de vista, em oposição ao palco italiano, torna-se exposto em todas as dimensões, mas também tem a oportunidade de se expor, como em um espelho, ao público, a sua condição demasiadamente humana

Além da rua que adentra o teatro transformando-se em palco, a relação interior/exterior no Oficina é explorada no limite do impensável, especialmente em se tratando de um espaço teatral onde tradicionalmente seria de se supor uma caixa hermeticamente fechada por  isolamento acústico, sonoro e visual. A cobertura tem abóbada de aço deslizante que “platonicamente contempla o elemento ar, e um jardim existente, a terra.” Essa terra resulta de pequeno recuo lateral da esquadria, onde uma enorme árvore – um angico ou gurucaia, hoje com mais de 12 metros de altura – encosta-se nos vidros de uma janela de cerca de 12 metros largura por toda a altura do edifício. A parede envidraçada descortina o lote vizinho, o Minhocão, a  cidade, a vida lá fora. O espectador fica fora e dentro e o espaço dramático tradicional, essencialmente metafórico, é confrontado com o concreto da cidade e seu cotidiano.

O projeto tinha ainda a previsão, indicada por croquis da arquiteta e por vãos deixados na parede de fundos, de desembocar numa praça pública posicionada em lote perpendicular ao do teatro. A importância do Oficina, a escassez de espaços públicos que dêm vazão à riqueza cultural do Bexiga, a intensidade de percursos a pé em um bairro popular e tão próximo do centro de São Paulo eram, e continuam sendo, motivos mais do que suficientes para se almejar essa escala. Tais projetos nunca foram detalhados pela arquiteta tendo em vista não se ter a propriedade dos imóveis e estão na base do debate político e jurídico que vem sendo travado pelo Teatro Oficina desde então.

O Oficina e a arquitetura teatral contemporânea

A arquitetura teatral contemporânea segue a tendência de aproximar ator e expectador, palco e platéia em espaços contiguos e, ainda, de flexibilização do espaço arquitetônico, de forma processual e dinâmica, onde a presença do indivíduo é fundamental para que o espaço se realize.

Não se trata de algo totalmente novo: Vitruvius, em De Architectura, previa uma cena arquitetônica total que cercava o palco, o espectador, o anfiteatro e a paisagem. Mais tarde, o palco elisabetano, do Globe Theatre de Sheakspeare, o Teatro Olimpico de Andrea Palladio ou o Palco Noh japonês são estruturas de maior aproximação com o público, ou com o ambiente ou mesmo onde se experimentam simultaneidades. A própria revisão do palco italiano não é nenhuma unanimidade, novos palcos italianos continuam sendo construídos e espetáculos de grande qualidade seguem sendo exibidos naqueles existentes.

No entanto, refletir sobre a arquitetura teatral é um exercício cada vez  mais complexo e transdiciplinar. Especialmente após a 2ª Guerra, a busca de novas relações entre o indivíduo e o espaço teatral se acentua e diretores e encenadores como Antonin Artaud, Bertolt Brecht, Jerzy Grotowski induzem à procura de reconfigurações espaciais capazes aprofundar a relação entre cena e público. O palco italiano é questionado total ou parcialmente, o que implica modificá-lo fisicamente ou promover, pela encenação, a remoção da chamada quarta parede, explodindo a conformaçao física.

O cenógrafo e mestre em Arquitetura, Cristiano Cezarino Rodrigues, no artigo denominado Cogitar a Arquitetura teatral, Revista Viruvius, jan 2009, ao investigar interfaces transdisciplinares entre a arquitetura e o teatro, elege três projetos para ilustrar os caminhos rumo a uma nova síntese entre esses dois: o Teatro Total (1927), de Walter Gropius; o Fun Palace (1961) de Cedric Price, e o Teatro Oficina (1984), de Lina Bo Bardi e Edson Elito.

Segundo descreve o autor, a arquitetura  teatral teve amplo espaço de discussão na Bauhaus, onde se questionava a rigidez do palco tradicional e as formas de relação entre a cena e o público, com base no conceito de “Teatro Total” de Moholy-Nagy, que defendia a  utilização de recursos capazes de “produzir um tipo de atividade cênica que não mais coloque as massas como espectadores impassíveis, e lhes permita “ fundir-se com a ação do palco”. O exemplo mais famoso é o projeto de Walter Gropius para o Total Theatre, 1927, que nunca chegou a ser construído. Junto com o diretor teatral Erwin Piscator e o encenador russo Meyerhold, Gropius propôs um edifício flexível, ovalado, com auditório conversível em palco italiano, arena ou palco projetado. Segundo o arquiteto, essas opções permitiriam um‘ataque’ ao espectador, alterando sua posição quando a peça está sendo encenada (…)  transformando a escala de valores vigente, colocando o espectador diante de uma nova consciência do espaço e fazendo com que ele participe da ação.”

Segundo a cenógrafa Lidia Kosovski , “a partir desta intensa investigação de técnicas óticas, de expedientes cinéticos e de novos materiais para o palco, a Bauhaus tornou-se um dos primeiros núcleos de estudos a perceber a cidade como campo de aplicação dos recursos utilizados na cena, sobretudo no uso da luz como linguagem”.

Fun Palace (1961) resulta de parceria entre o arquiteto britânico Cedric Price e a encenadora Joan Littlewood. O edificio proposto por Price, que também nunca foi construído, tinha um programa de atividades aberto e indeterminado: uma estrutura metálica com paredes, teto, escadas, plataformas pré-fabricadas, que poderiam ser seriam montados por guindastes, possibilitando os mais diferentes usos e as mais inusitadas formas, fosse um teatro, um restaurante, um cinema, oficinas ou arena. O mais relevante no estudo do Fun Palace é que a noção de público ativo e participante ultrapassa o espaço-tempo do evento em si e amplia-se para o edifício, elevando exponencialmente o diálogo entre ambos. O Fun Palace não determina a forma como o espectador experimenta o evento, enquanto que no Teatro Total de Gropius, por mais que os arranjos da platéia mudem, a maneira com que o espectador experimenta o evento continua a mesma. No Fun Palace as formas de relação entre a cena e o público e a participação deste não dependem exclusivamente do artista, como é o caso do Teatro Oficina, descrito a seguir.

O estudo de Rodrigues oferece como grande contribuição situar o Teatro Oficina no debate internacional sobre a arquitetura teatral contemporânea. A começar, o caso do Oficina alinha-se com a tendência mundial de um  teatro para cada encenador e não mais de uma idéia universal do que seja o teatro. As discussões sobre o palco italiano, o papel do espaço nao apenas como suporte, mas como agente da cena, estão todas presentes no projeto que, segundo a ótica mencionada por Rodrigues e confirmada pelos depoimentos, é de autoria de  Lina/Edson/ZéCelso. Da proposta da Bauhaus, o Oficina, com seu palco-rua, experimenta concretamente o que Lidia Kosovski diz ser tratar “a cidade como campo de aplicação dos recursos utilizados na cena”. Um passo adiante do Teatro Total no que se refere à relação ator-público e menos ambicioso que o Fun Palace quanto à flexibilidade e à simultaneidade de recursos, o fato é que, dos três, o Oficina é a única proposta realizada, construída e utilizada à exaustão por mais de 20 anos.

A metáfora da rua é o paradigma da concepção do Oficina, a rua como sendo o que permite sair da experiência da contemplação para a esfera da ação . A rua é o lugar de se encontrar o Outro e o Oficina funda seu teatro nesse símbolo, no desejo de contato físico, numa linguagem que se aproxima das raízes da cultura brasileira e aborda o indivíduo, segundo seu encenador, pela psiché, pela “possessão” e não apenas pela razão. Segundo Rodrigues, é no teatro-rua que o extraordinário se insere no ordinário do cotidiano e a vida oferece a matéria prima para a reflexão, para a transformação do espaço e do próprio indivíduo. A relação edifício/cidade, aqui discutida para o caso do Oficina, ainda tem muito espaço para aprofundamento e investigação. Ainda que raros, em todo o mundo surgem trabalhos como do Teatro da Vertigem, grupo também baseado em São Paulo, que exprimenta radicalmente a utilização de espaços não convencionais para encenação, como as ruas, as igrejas, os hospitais da cidade.

As considerações, presentes no dossier, sobre possivel Registro do Oficina como Bem Imaterial tem, certamente, um lastro na constatação desse fenômeno, ou seja, de um espaço que somente se realiza mediante a ação, profundamente enraizado em um território que é São Paulo e que é o Bexiga e, sobretudo, de um espaço conformado pela imaterialidade da prática teatral. Embora a indagação seja corretamente motivada, a solução, ou seja, o Registro, não parece compatível com definição de Lugar decorrente da legislação em vigor e da sua experiência de aplicação.

Conclusão da Parte II

Toda essa reflexão, no entanto, me parece mais do que suficiente para motivar o reconhecimento do valor excepcional dessa – para usar a analogia com os termos do imaterial – arquitetura viva, que, por vezes se retrai e permite, por vezes se impõe e induz a cena, o rito, o encontro e o confronto. Mais uma vez conforme Rodrigues,”arquitetura e teatro, no Oficina, são, ao final, a mesma coisa: espaços conformando sujeitos.”

Assim é que essa arquitetura, entalada em um lote exíguo, limitada por todos os lados, feita de um aparente provisório, entre andaimes e fragmentos de terra batida, encravada em um bairro cuja riqueza e diversidade têm sido tão maltratadas pela cidade, merece ser gravada no Livro de Tombo das Belas Artes.

Tanto pelo que, sem nenhum favor, ela já provou ser, quanto pelo que pode instigar sobre o próprio sentido do belo, o belo que, invocando Lina Bo Bardi, seja capaz de demolir dicotomias entre forma e função e de produzir metáforas realizáveis. Não o portal da Catedral de Colônia, mas marco importante de um caminho difícil.

 

A relação entre o Teatro Oficina e o Bexiga e as recomendações quanto ao entorno

Os imigrantes italianos pobres, que se instalaram nos pequenos lotes do parcelamento da Chácara do Bexiga no final do século XIX, encontraram ali o núcleo semi-rural de Saracura, onde existia um remanescente de quilombo. Uma situação topográfica complicada, a proximidade do centro e da Avenida Paulista, fizeram do Bexiga um reduto de trabalhadores domésticos das casas de alto padrão, operários, trabalhadores informais, pequenos comerciantes. Esse modelo, que, segundo Raquel Rolnik em A Cidade e a Lei – legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo, se reproduziu em vários bairros da cidade, explica porque o Bexiga é hoje, não apenas o bairro dos italianos, mas o lugar das festas populares, do samba paulista, de uma das mais importantes escolas de samba do país – a Vai Vai, e dos terreiros de candomblé. Em torno dos anos 1960/70, o Bexiga se tornou um pólo da vida boêmia da cidade, lugar dos teatros (ainda hoje são mais de dez), bares e cantinas, hoje integrados a um circuito turistico-cultural de São Paulo.

Encontra-se em desenvolvimento, pelo Departamento de Patrimônio Imaterial do IPHAN, o inventário de Referências Culturais da região, que poderá oferecer insumos importantes para a salvaguarda desses valores culturais.

Tombamentos municipais (cerca de 900 imóveis) e zonas especiais (ZEPCs – Zonas de Especialis de Patrimônio Cultural e ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social) previstas pelo Plano Diretor atestam a importância do bairro e o interesse de se preservar ali, não apenas edificações, mas os usos e a diversidade que são o seu maior valor.

É imediato associar o Teatro Oficina a esse contexto por duas vias: tanto o Oficina pode ser tomado como elemento chave de um processo de reabilitação, quanto a preservação dos valores do bairro é essencial à vitalidade do Oficina.

O que não fica claro – e deveria merecer uma avaliação mais aprofundada – é porque uma cidade como São Paulo, onde se tem a maior e mais consolidada experiência de aplicação de instrumentos urbanísticos como a transferência do direito de construir e as operações urbanas não elegeu o Bexiga para a aplicação prioritária desses mecanismos, justo uma região tão bem localizada, que tem potencialmente muito mais valor para São Paulo – até mesmo sob o ponto vista estritamente financeiro – pela sua diversidade cultural do que pela quantidade de metros quadrados que se possa construir ali. Edificações com destinações comerciais e de serviços, que não tenham outros requisitos locacionais a não ser a acessibilidade, podem ser deslocadas dentro do espaço da cidade utilizando instrumentos dessa natureza. Já o lugar das práticas culturais é ali, e só ali. Se não for ali, o Bexiga como tal deixará de existir.

Jurema Machado

 Rio de Janeiro,24 de junho de 2010

Conclusão

Considerando o Parecer da Relatora e após discussão do Conselho, foi a seguinte a decisão final:

  • Pela inscrição do Teatro Oficina no Livro de Tombo Histórico e no Livro de Tombo das Belas Artes. 
  • Pela re-avaliação posterior, pelo IPHAN, da delimitação do entorno, tendo em vista tratar-se de bem a ser inscrito também no Livro de Belas Artes e não exclusivamente no Livro Histórico,e 
  • Pela  manifestação, ao Ministro da Cultura, de que o Ministério e o governo federal identifiquem mecanismos que viabilizem a destinação do terreno contiguo ao Teatro Oficina para um equipamento cultural de uso público, utilizando mecanismos tais como a aquisição, a desapropriação ou a conjugação destes com instrumentos urbanísticos a serem identificados em cooperação com o Município e com o Estado de São Paulo.

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